A Febre do Rato - 2011. Dirigido por Cláudio Assis. Escrito por Hilton Lacerda. Direção de Fotografia de Walter Carvalho. Música Original de Jorge Du Peixe. Produzido por Cláudio Assis e Júlia Moraes. Belavista Cinema e Produção e Parabólica Brasil / Brasil
Dar voz aos que não têm voz, esta é a principal proposta de Zizo (Irandhir Santos), um poeta anarquista, que edita um zine chamado A Febre do Rato. Ele mora junto com a mãe em um bairro pobre de Recife e divide seu tempo entre a confecção de seu periódico, que ele faz com uma rústica prensa tipográfica em sua própria casa, e a distribuição do mesmo, que é feita tanto na vizinhança quanto nas regiões mais nobres da cidade. Ébrio pela própria utopia, Zizo mergulha com a alma naquilo que acredita e dedica a sua vida à busca por uma liberdade, que inclui a independência em relação às classes dominantes e a superação da moral constituída, contra a qual ele bate de frente com o seu comportamento libertário e transgressor.
É pouco provável que Zizo tenha uma bagagem intelectual que embase sua postura contestadora, mas isso definitivamente não importa, percebemos rápido que a sua identidade vem da vivência prática e não da abstração teórica. Seu comportamento ambíguo não pode ser julgado por uma ótica maniqueísta, sua conduta é, numa última análise, um fruto do meio no qual ele está inserido, que é tão estranho e ambíguo quanto ele próprio. Após uma rápida reflexão sobre a postura do poeta e suas reivindicações, chego à conclusão de que o anarquismo pelo qual ele luta não é aquele que ambiciona a queda do estado e a ausência de governantes, mas sim um anarquismo pessoal, baseado na premissa de que cada um deve ser livre para viver à sua maneira, ainda que à margem do estado e de suas instituições.
É esta a liberdade que Zizo quer e em seu projeto de sociedade livre o amor, a amizade e o apoio mútuo são os elementos capazes garantir a subsistência, mesmo em um contexto social tão adverso quanto aquele no qual ele vive. Com seus versos, ele tenta chamar a atenção para a realidade de sua gente, eles, mesmo estando à margem, querem ter reconhecido o direito de serem tratados como gente. Percebe-se que no ambiente no qual a história do filme se passa não há qualquer tipo de intervenção do estado, nem para a garantia de políticas públicas, nem tão pouco para a repressão, prova disso é que em diversos momentos personagens consomem e comercializam drogas ilícitas e isso sequer parece ser visto como uma contravenção, dada a forma com que o uso das mesmas é aceito pela comunidade.
Zizo está sempre rodeado por seu grupo de amigos, fato este que o torna um personagem mais humano e cativante, e é interessante perceber de que forma se dá o relacionamento entre eles, há uma espécie de cumplicidade e uma sensação de pertencimento compartilhada, coisas que não são tão fáceis de serem encontradas nos laços cada vez mais frágeis que criamos em nossos próprios relacionamentos. Este peculiar grupo de personagens, que está sempre à volta do poeta, inclui, dentre outros, Dona Marieta (Ângela Leal), mãe do poeta, o traficante Boca (Juliano Cazarré) e a namorada dele, Rosângela (Mariana Nunes), o coveiro Pazinho (Matheus Nachtergaele), melhor amigo de Zizo e sua convivente, a travesti Vanessa (Tânia Granussi) e as senhoras Stella Maris (Maria Gladys) e dona Anja (Conceição Camarotti), parceiras sexuais frequentes do poeta.
O núcleo no qual estão todos inseridos parece entrar em ebulição com o aparecimento da colegial Eneida (Nanda Costa), por quem Zizo fica completamente apaixonado. Ela não dá bola pra ele nem valoriza os seus poemas. O fato de ela parecer ser, à primeira vista, um objeto de desejo inalcançável torna o sentimento que ele passa a alimentar ainda mais intenso e embriagante. Tendo-a como sua musa inspiradora, ele passa a se consumir ainda mais com sua própria arte, como se cada verso de seus poemas fosse uma labareda de fogo ateada contra o próprio corpo.
Há muito da personalidade do cineasta Claudio de Assis na construção do protagonista do filme. Tal como acontece com Zizo, a arte de Assis aparenta ser uma extensão de sua própria personalidade. Abraçando posições radicais em relação ao meio em que atua, o cineasta chama a atenção para aquilo que está fazendo sem precisar para isso se render ao padrão estético exigido pelo mercado. O incômodo que seus filmes causam não pode ser confundido com apelação, como alguns críticos defendem, este incômodo vem na verdade é do choque entre concepções de mundo tão distintas, a dele e a nossa, e é isso que torna sua marca autoral tão instigante e perigosa para as arcaicas concepções do meio.
O último ato do filme começa com uma passagem emblemática, que remete de imediato à atual situação social/política em que o Brasil se encontra, nesta sequência vemos a forma de agir do Estado diante de algo que não compreende e não consegue cooptar - A subversão acaba sendo tratada como mero banditismo e as semelhanças com a realidade não são mera coincidência, o que me leva a classificar A Febre do Rato como um filme completamente político. Paulo Martins, personagem central do clássico Terra em Transe (1967) de Glauber Rocha, fora alertado de que 'a política e a poesia eram demais para um homem só', ele no entanto se deixou ser consumido pelas duas. Tal como ele, Zizo (a criatura) e Claudio de Assis (o criador), aparentam não temer as contradições que ardem como chamas em suas mentes.
Não fiz o paralelo acima por acaso, pode ser notada uma forte influência do pensamento e da obra de Glauber Rocha no filme de Claudio de Assis. Os pressupostos da estética da fome, defendida pelo cineasta baiano, estão evidentes em A Febre do Rato, bem como o engajamento político e o experimentalismo formal, que remete também a Godard, que pode ser notado na maneira com que a fotografia de Walter Carvalho e a trilha sonora do Jorge Du Peixe (vocal do Nação Zumbi) integram a narrativa e na opção de filmar situações que fogem ao convencionalismo e ao suposto bom senso das produções maisntreans. A reverência a Godard, por sua vez, pode ser notada numa sutil referência à uma das cenas mais clássicas de Bande à Part (1964), filme escrito e dirigido pelo cineasta francês.
Destaco por fim o desempenho de todo o elenco, com destaque para a atuação visceral de Irandhir Santos, que aparenta entrar no personagem de corpo e alma, emprestando a ele emoções que chegam a ser quase palpáveis por serem dotadas de uma intensidade brutal e avassaladora que se manifesta nos gestos, no olhar e principalmente na voz. A Febre do Rato definitivamente não é o tipo de filme que tende a agradar aos mais diversos públicos, esta também não é a sua proposta, por isso, ao assisti-lo é necessário que nos dispamos de qualquer preconceito em relação a aquilo que nos é estranho e que estejamos com os nossos olhos suficientemente aberto para captar a beleza que emana mesmo das situações mais incômodas.
A Febre do Rato ganhou o prêmio de Melhor Filme da Associação dos Críticos de Arte de São Paulo.
A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra.
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